O fim do financiamento público às comunidades terapêuticas, a defesa dos direitos humanos, o fortalecimento da reforma psiquiátrica e dos serviços territoriais de cuidados são alguns dos pontos defendidos no manifesto lançado em âmbito nacional pela militância da luta antimanicomial no Brasil. Esses e outros assuntos foram tratados pela Frente Parlamentar em Defesa da Saúde Mental e Luta Antimanicomial, que se reuniu nesta sexta-feira (10), data em que é celebrado o Dia Mundial da Saúde Mental.
A professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Fabíola Leal integra o núcleo nacional que defende a causa e explicou que o grupo não está disposto a negociar princípios.
“Essa campanha surge por todo esse histórico, desde quando a gente implementa a reforma psiquiátrica no Brasil, e dizendo não ao manicômio. Se há uma concordância ou discordância do que é o manicômio, vamos dialogar por princípios e aqui nesta mesa não estamos dispostos a ceder os nossos princípios”, pontuou a doutora em Políticas Sociais.
Comunidades terapêuticas
Dados do governo federal dão conta de que o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) já destinou em 2025 cerca de R$ 170 milhões para comunidades terapêuticas. A professora explanou sobre o que as pesquisas, a legislação e a literatura sobre o tema revelam sobre essas instituições.
“São serviços majoritariamente, no Brasil, vinculados a instituições religiosas de diversas denominações. Têm um caráter asilar, de confinamento, você entra numa instituição dessa e fica por longo prazo”, revelou a palestrante.
“Não estou dizendo nada que não seja real. Confinamento em longo prazo e baseado num modelo, numa ideia de enfrentamento da questão, sobretudo do consumo de álcool e outras drogas e substâncias psicoativas, por meio do labor e da oração. Esse é o modelo no Brasil. Eu já viajei o mundo, eu já visitei comunidades terapêuticas em todos os países que vocês possam imaginar. Não existe comunidade terapêutica igual ao modelo brasileiro. Esse modelo de oração e confinamento só acontece no Brasil. Quando a gente diz isso no exterior, as pessoas não conseguem entender”, acrescentou.
A especialista abordou também o aspecto regulamentar dessas instituições que, para ela, estão no “limbo”, não são equipamentos de saúde e nem de assistência social do Sistema Único de Saúde (SUS). “Elas usam de violências e violações de direitos de várias formas. Esse confinamento, o distanciamento dos territórios dos sujeitos que lá estão, as práticas de intensificação de oração e recurso da fé para enfrentar o problema das drogas”, listou a professora.
“São trabalhos aviltantes, não pagos, algumas vezes com indícios de trabalho escravo, sem direito a escolhas e decisões porque o indivíduo não tem o direito da escolha. Quando eu sou cerceado no direito de qualquer coisa dentro de uma instituição que confina, não vejo ali algum direito humano. (...) Fazem rituais desvinculados de qualquer dimensão de uma proposta de cuidado singular, diferenciado, particularizado desses sujeitos, ainda que exista presença de profissionais de saúde em algumas delas”, complementou.
Segundo a especialista, esse tipo de tratamento coletivizado fere os princípios preconizados na reforma psiquiátrica, de singularidade na atenção, da não padronização dos fenômenos. “E quando a gente ainda fala de mulheres e pessoas de outras identidades de gêneros fora do binário, isso ainda é pior, e sobretudo quando a gente fala da dimensão de raça. São as pessoas que hoje compõem essas comunidades, pessoas negras majoritariamente (...). Um público de pessoas pobres, porque a elite não vai pra dentro das comunidades terapêuticas”, disse.
Pesquisa
A professora é uma das coordenadoras de uma pesquisa que está sendo desenvolvida pela Ufes, visitando Centros de Atenção Psicossocial (Caps), clínicas e também comunidades terapêuticas. De acordo com a pesquisadora, a universidade só conseguiu acesso a 27 das mais de 100 comunidades terapêuticas cadastradas no Espírito Santo. “A maior parte se negou ou não respondeu. E algumas a gente nem localiza mais, porque elas mudam bastante de lugar”, revelou.
Os relatos de muitas das instituições visitadas são de que naqueles espaços não há violação de direitos humanos, alegam ter boa estrutura, alimentação, organização e presença de profissionais de saúde. “Às vezes, visivelmente, não é sobre isso que a gente está falando. A gente está falando de outros princípios que estão colocados ali e sendo violados, que não é desse acolhimento, desse amor ao próximo”, afirmou a especialista.
“São corpos descartáveis para a sociedade, corpos que precisam ser corrigidos, punidos, com uma linguagem de acolhimento e vinculada ao discurso religioso que mascara formas de dominações e opressões, enfim, uma ideia de ajustamento da imoralidade porque consomem drogas, do aprisionamento de subjetividades, domesticação e contenção. Como é que pode ter cuidado em saúde mental junto de tudo isso?”, questionou.
Experiência pessoal
Usuário do Caps, Warley Lima do Nascimento falou sobre a sua experiência pessoal nos dois tipos diferentes de tratamento. Após ter passado por duas comunidades terapêuticas, ele revelou que não guarda boas lembranças desse período. “É uma comunidade que não acolhe, pega as pessoas, enfia no quarto, com comida regulada (...) seguram os documentos da pessoa, não deixam a pessoa ir embora, e o dinheiro do seu trabalho vai todo para eles, eu ficava sem um centavo”, testemunhou.
“Pra sair de uma delas eu tive que chamar até a polícia, para pegar meus documentos de volta, para ir embora. Já no Caps (Centros de Atenção Psicossocial) eu fui acolhido, meus irmãos me levaram e eu pensava que seria a mesma coisa, eu estava nervoso. Mas o Caps acolhe, tem psicóloga, tem psiquiatra, tem terapeuta, tem humanidade, eles vão na casa da gente, ajudam e orientam. Foi uma diferença enorme para mim. Eu acho muito importante que tenha mais Caps, porque tem pouco ainda, eles estão lotados”, disse Warley.
Financiamento público
Atuando na causa desde 2023, o colegiado presidido pela deputada Camila Valadão (Psol) se posiciona em defesa de investimentos na Rede de Atenção Psicossocial (Raps). “O que a gente constatou ao longo desses dois anos é a necessidade de mais investimentos por parte do Estado, principalmente para garantir as condições para que os municípios possam estruturar a sua rede de atenção psicossocial a partir da abertura de Caps”, argumentou a parlamentar.
“Nós não queremos que os investimentos da saúde mental, do SUS, sejam direcionados para as comunidades terapêuticas, que essa é uma tendência em âmbito nacional, entendendo que as comunidades terapêuticas não são serviços de saúde na área da saúde mental”, pontuou a deputada.
A presidente do colegiado listou uma série de diferenças no tratamento e no acolhimento das duas redes. “Entre as diferenças, eu ressalto a necessidade desse cuidado da saúde mental, que está colocado com base no território, sem rompimento de vínculo familiar, sem a reprodução de uma perspectiva manicomial, que a gente já rompeu, inclusive, com a legislação brasileira. Então acho que isso é o que tem de maior diferença”, disse.
“Além, obviamente, de os nossos Caps serem serviços regulamentados que prevêem equipe de atendimento especializada. Em muitas comunidades terapêuticas, por vezes, não há esse acompanhamento profissional especializado. Nos Caps a gente está falando de assistente social, psicólogo, enfermeiros, médicos, enfim, de uma equipe ampla para esse acolhimento e esse atendimento”, opinou.
Contraponto
Antes de apresentar seus pontos de divergência em relação às comunidades terapêuticas, o vice-presidente do Conselho Estadual sobre Drogas, José Carlos Fiorido, manifestou-se a favor do debate público e democrático.
“Quando a gente se dispõe a ouvir o outro, não tem ideia melhor ou pior, tem a ideia que pode ser renovada e a gente abandona alguns pontos para adotar outros, não tem regras fechadas, porque o diálogo pressupõe a ideia de escutar o outro”, ressaltou Fiorido.
O gestor defendeu as comunidades terapêuticas, desde que elas sejam fiscalizadas. “Quando elas se habilitam legalmente para fazer aquilo que se propõem a fazer. E o conselho estadual, na verdade, tem uma comissão de fiscalização das comunidades. Nós temos cinco, hoje, que o poder, o erário público, mantém com o tesouro do Estado”, destacou.
“E essas cinco nós não temos nenhuma reclamação delas. E temos espaço para reclamações, onde, na verdade, cada pessoa pode utilizar esse espaço para reclamar, e todas as denúncias são apuradas. Portanto, nós defendemos as comunidades terapêuticas. Até porque se a gente fecha as comunidades terapêuticas, vai levar as pessoas para onde?”, questionou.
De acordo com Fiorido, o próprio Estado reconhece que não tem estrutura para acolher toda a rede de usuários. “Então, a sociedade civil é chamada para fazer esse trabalho e faz muito bem. Agora, como qualquer setor da vida, as pessoas precisam de treinamento, capacitação, fiscalização e monitoramento. Nesse particular, os conselhos municipais sobre drogas podem fazer um belo trabalho no sentido de que vão agilizar não só a preparação dessas comunidades para atender o que se propõe, como também fiscalizá-las caso elas não atendam aquilo que está posto”, finalizou.